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Mitologia em Português

23 de Abril, 2022

Sobre o Zohar e o Misticismo Judaico

Para falar sobre o Zohar talvez devamos começar com uma pequena história mais pessoal. Há alguns anos, um dos nossos colegas trabalhava em part-time num alfarrabista lisbonense, bem próximo da estação de comboios do Rossio. Eram muitos os livros que as pessoas queriam comprar, e outros tantos os que pretendiam vender ao proprietário, mas um dia foi-lhes feito um pedido invulgar - uma mulher, talvez na casa dos 40 anos, quis adquirir uma cópia da obra de que aqui falamos hoje. Se, por um lado, ela parecia verdadeiramente interessada nessa colecção de textos, por outro depressa se percebeu que ela não sabia bem o que estava a pedir, que tinha ouvido falar da obra num contexto místico e, como tal, queria adquiri-la e lê-la. Não foi possível na altura, continuaria sem ser possível hoje, mas esta pequena história ilustra bem o problema que é tentar localizar determinados textos nos dias de hoje, mas ainda mais difícil conseguir lê-los e compreendê-los.

O Zohar, os dez sephiroth e o Misticismo Judaico

Por exemplo, acima reproduzimos uma imagem que é provável que já muitos leitores tenham visto no passado. Ela é relativamente frequente no contexto da Kabbalah - até já reproduzimos aqui uma semelhante, quando falámos da história de José della Reina - e o seu verdadeiro significado advém dos ensinamentos místicos presentes no Zohar. Qual é ele... é tudo menos simples, não conseguiríamos resumi-lo num punhado de linhas, mas entre muitas outras coisas pode ser visto como uma representação esquemática de toda a existência, com as palavras-chave aqui a serem, sem qualquer dúvida, "entre muitas outras coisas". Isto, porque essa multiplicidade de significados, que é constantemente explorada nesta obra, parece ser um dos seus grandes cernes.

 

Então, o que é o Zohar, de facto? Podemos resumi-lo, de uma forma incrivelmente redutora, como um comentário à Tora, o principal livro religioso dos Judeus, mais conhecido entre nós como parte do Antigo Testamento cristão. Mas, ainda assim, pensar na obra como um mero comentário é, de facto, muitíssimo redutor, porque a sua função vai muito além do mero comentário das palavras, procurando explorar um elemento místico bastante complexo por detrás das mesmas. Por exemplo, páginas e páginas de diversas sequências falam do significado da primeira de todas as palavras do Livro do Genesis - בְּרֵאשִׁית ("Beresheet", i.e. "No princípio") - e demonstram um complexíssimo sistema de subsignificados por detrás dela, constantemente mutáveis e reinterpretados pelos muitos rabis que vão intervindo na obra. Por exemplo, ainda sobre a imagem acima e os dez sephiroths, em dada altura eles são visto como um símbolo do corpo do homem primordial, אָדָם קַדְמוֹן ("Adam Kadmon"):

Hesed - braço direito; Gevurah - braço esquerdo; Tiferet - torso; Nezah e Hod - as duas pernas; Yesod - sinal da Sagrada Aliança; Malkhut - boca; Hokhmah - pensamento interior; Binah - coração; Keter...

 

Se até o pode parecer, não é simples. Mesmo que se queira ver em tudo isto influências do Gnosticismo de outros tempos, potencialmente sintetizadas por Moisés de Leão no século XIII (e hoje acredita-se que seja ele, e quase só ele, o autor da obra), entender este Zohar implica um conjunto enorme de conhecimentos que o leitor habitual destas linhas raramente tem. Mesmo no nosso caso - e confesse-se que até passámos largas horas a discutir algumas sequências - não conseguimos entender bem algumas passagens. Depreende-se, nesse sentido, que quem quiser procurar a obra, com o objectivo de a ler e perceber, terá de ter um conhecimento enorme da religião judaica... diz até uma espécie de lenda que a obra só pode ser compreendida depois de 40 anos de estudo intenso, um tempo que nós, como a maioria dos leitores, não podemos utilizar para um tal estudo.

Se, na verdade, até existem passagens na obra que podem ser equiparadas a pequenas histórias, com uma trama fechada em si mesma, mesmo essas procuram muitas vezes ilustrar princípios místicos que nem sempre podem ser compreendidos com facilidade.

 

O Zohar não é uma obra para todos. Mesmo que aquela mulher, cujo nome o nosso colega já há muito parece ter esquecido, a tivesse conseguido adquirir, é quase certo que não a conseguisse compreender de forma completa, até porque foi possível perceber que o seu conhecimento do Judaísmo era muito pouco. Procurar o misticismo por detrás de fontes literárias como esta é uma tarefa certamente interessante, mas - e ao contrário do que "especialistas" de vão de escada tentam dizer em "conferências" pagas apenas em dinheiro e sem factura - há que admitir que o seu verdadeiro significado não é para todos.

O Zohar não é uma obra fácil, é uma obra para aqueles que já sabem o que lá irão encontrar e, talvez mais que tudo, uma obra cujo estudo poderá mesmo levar toda uma vida. Que se considerem avisados todos aqueles que decidam procurá-la...

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