Refresh

This website www.mitologia.pt/2022/07/?page=2 is currently offline. Cloudflare's Always Online™ shows a snapshot of this web page from the Internet Archive's Wayback Machine. To check for the live version, click Refresh.

Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Mitologia em Português

07 de Julho, 2022

A verdadeira paternidade de Caim e Abel

Para a maioria dos crentes cristãos e judaicos a paternidade de Caim e Abel poderá nada ter de muito surpreendente. São os dois primeiros filhos de Adão e Eva, ponto final. Mas, fosse a história original assim tão simples, tão horizontal como hoje tendemos a pensar, e certamente que não lhe estaríamos a dedicar estas linhas de hoje. Portanto, vamos a algo mais inesperado sobre a paternidade destas duas figuras bíblicas.

O confronto de Caim e Abel

Hoje, quem conhecer a história de Caim e Abel associa-lhes um relato muito simples - Adão e Eva foram expulsos do Paraíso depois de comerem o famoso fruto, tiveram um primeiro filho, depois tiveram um segundo, o mais velho dos dois acabou por matar o seu irmão, e os pais primordiais depois acabaram por ter muitos outros filhos (notavelmente Seth). Dito assim, parece que as coisas são como tal e sempre se acreditou que foram como tal, até que se pense um pouco mais em toda a história - o que levou Caim a matar o seu irmão? Inveja? A recusa de um sacrifício a Deus? Ou, de um modo muito mais geral, se por este seu acto o assassino parece ter sido a origem de todo o mal, como se poderá explicar essa horrenda criação, que parece ter sido tão inesperada?

 

Há muito tempo que a humanidade, e em particular os crentes cristãos e judaicos, se deparam com questões como essas. Mas a resposta que aqui trazemos hoje, provinda de uma mesma tradição que mais tarde geraria histórias como as de Lilith, é talvez uma das mais intrigantes para um crente dos nossos dias - ela diz que Abel era filho de Adão e Eva, como hoje continuamos a acreditar, mas dá uma paternidade muito diferente ao irmão responsável por este primeiro grande crime, o hediondo Caim. Mas, ora bem, se na altura ainda não existiam quaisquer outros seres humanos, como é possível que esta primeira mãe tenha gerado outro filho com alguém que não o seu marido?

Adão e Eva, serão ambos pais de Caim e Abel?

A resposta pode, no mínimo dos mínimos, ser considerada como insólita, e diz-nos que Eva teve esse seu primeiro filho com a Serpente, aquele mesmo simbólico animal que tempos antes a tinha convencido a comer o fruto da árvore proíbida. Isto é mencionado em diversos textos dos inícios da nossa era, seja de uma forma bem directa ou mais ou menos dissimulada*... mas será que havia muita gente a acreditar nessa estranha possibilidade, ou ela era um simples criação de uma qualquer estranha seita gnóstica? A segunda opção poderá parecer-nos a correcta, até que nos confrontemos com uma estranha frase presente no Livro do Genesis (6:4), cujo verdadeiro significado intriga os leitores há milénios, e que pode ser traduzida da seguinte forma:

Naquela época, e também algum tempo depois, havia Nefilins na terra, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens e elas lhes deram filhos.

Neste seguimento, e se quisermos interpretar os tais "filhos de Deus" como anjos caídos (sobre isso, podem também ler o que depois escrevemos aqui), de que Satanás, Samael e/ou a Serpente são hoje os exemplos mais famosos, é verdadeiramente possível que essa seja uma referência antiga a uma tradição, hoje perdida, de que tinham existido relações sexuais entre duas classes de seres criados por Deus, podendo Caim ter sido gerado numa dessas relações, enquanto que já Abel nasceu de Adão. A ideia, por estranha que nos pareça, permite explicar a origem do mal, fazendo do primeiro "mau" um descendente de uma criatura considerada a pura representação do próprio mal... o que, queiramos ou não, até faz algum sentido!

 

 

*- Por exemplo, num desses textos antigos um Arcanjo diz a Adão que "Ecce Cain filius tuus, quoniam filius diaboli est, occidet Abel fratrem suum", i.e. "Aqui está o teu filho Caim, e porque é filho do Diabo irá matar o seu irmão Abel", apoiando a ideia - se metafórica, ou mais real, já é aqui difícil compreender - de uma ligação entre o Diabo e Eva.

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
04 de Julho, 2022

O "Clássico das Montanhas e dos Mares" e os animais estranhos

Já aqui falámos antes, de forma muito breve, sobre o Clássico das Montanhas e dos Mares (山海经), uma obra chinesa da Antiguidade que, resumidamente, pode ser vista como um bestiário. Ela descreve, de forma muito breve, as criaturas, deuses e seres humanóides que se cria que existiam não só em terras da China mas também nos além-mares, juntamente com algumas informações sobre os poderes especiais de algumas delas. Foi sobre esse último elemento que cá dedicámos algum tempo antes, quando discutimos se os Chineses comem carne humana, mas hoje decidimos falar um pouco mais sobre os estranhos animais que vão surgindo nessa obra. Alguns deles são bem reais, pelo que têm pouco interesse mitológico, mas depois de uma releitura da obra original apresentamos aqui um pequeno resumo das criaturas mais notáveis da obra, escolhidas em virtude da estranheza das características que aí lhes são atribuídas:

Bashe, numa imagem do Clássico das Montanhas e dos Mares

Bashe - cobra que devora elefantes, cuspindo os ossos após três anos (ver imagem acima).
Bo - cavalo branco com cauda preta, um corno, dentes e garras de tigre. Come tigres e leopardos.
Changfu - galinha com três cabeças, seis olhos, seis pés e três asas, comê-la remove o sono.
Chiru - peixe com cara humana, comê-lo protege contra as doenças.
Danghu - faisão que voa com as penas do pescoço, comê-lo cura as doenças da visão.
Fei - boi com cabeça branca, um olho e cauda de serpente. As águas evaporam e a vegetação morre por onde ele passa.
Feiyi - cobra com seis pés e quatro asas.
Huan - cabra sem boca que é indestrutível.
Juru - pato com cabeça branca, três patas, e cara humana.
Lei - gato que tem ambos os sexos, comê-lo cura as invejas.
Lei - pega vermelha e preta com duas cabeças e quatro pés.
Lushu - cavalo com listas de tigre e rabo vermelho, o seu pêlo ajuda a ter muitos descendentes.
Manman - pato com uma asa e um olho, que só consegue voar se encontrar um companheiro.
Manman - rato com cabeça de tartaruga, e que ladra.
Min - pássaro com bico vermelho, protege do fogo.
Paoxiao - cabra com cara humana, olhos por trás dos sovacos, dentes de tigre e mãos humanas. Come seres humanos.
Qinyuan - abelha do tamanho de um pato, que mata animais e árvores com o seu ferrão.
Qiongqi - tigre com asas, que come as pessoas começando pela cabeça (ou pelos pés), com preferência por aquelas que usam cabelos longos.
Renyu - peixe com quatro pernas. Comê-los cura a estupidez.
Rupi Zhi Yu - frigideira com cabeça de pássaro, barbatanas e cauda de peixe. Faz nascer pérolas e jade.
Shenchui - seres com cara humana, um pé e uma mão.
Shuhu - cavalo com asas de pássaro, cara humana e cauda de serpente.
Shuyu - galinha com penas vermelhas, três caudas, seis pés e quatro cabeças. Comê-la cura a tristeza.
Tulou - cabra com quatro cornos, come seres humanos.
Tuofei - mocho com cara humana e uma só perna.
Xingxing - porco com cara humana, que consegue identificar as pessoas só pelo seu nome.
Xingxing - macaco falante, comê-lo faz a pessoa mais rápida em corrida.
Yao - pato com corpo verde, olhos rosa e cauda vermelha. Comê-lo ajuda a ter filhos do sexo masculino.
Yiniao - cinco pássaros tão grandes que conseguem com a sua sombra cobrir vilas inteiras.
Yu - mocho com cara humana, quatro olhos e orelhas.
Zheng - leopardo vermelho com cinco caudas e um corno, que faz o barulho de pedras a chocarem umas com as outras.
Zhu - mocho que tem mãos humanas em vez de pés.

 

O Clássico das Montanhas e dos Mares contém muitas mais criaturas além destas, num total de mais de duas centenas, (quase?) todas elas ilustradas com belos desenhos da época. Até pode ser esse o elemento mais notável de toda a obra, essa intenção dos seus autores de não só descrever estes animais e figuras mas também de mostrar como se pensava que eles eram. Curiosamente, algumas vezes a descrição e a imagem não batem certo, parecem referir-se a duas criaturas muito distintas, mas parecem ser raras essas falhas, que só quem estiver com muita atenção acabará por notar.

 

Mas o que é mais notável, em relação a este Clássico das Montanhas e dos Mares, é o facto de ter tido uma importância enorme na cultura chinesa. Isso ainda hoje é visível, porque nessa cultura continuam a atribuir-se a determinadas espécies algumas características misteriosas - e.g. o corno do rinoceronte aumenta o poder sexual - que podem, ou não, ser verdade. Alguns ainda acreditam que seja, outros já não... mas será que comer um Shuyu verdadeiramente curava a tristeza? Não será fácil encontrar uma criatura como essa, mas fazendo fé na obra, não podemos deixar de nos interrogar como terão sido inventadas muitos dos estranhos animais que este texto diz existirem em algum lado. Será que alguém, em alguma altura, acreditou tê-los visto com os seus próprios olhos? Somos levados a pensar que sim, mas como puderam ser testadas aquelas características mais estranhas que eram atribuídas a alguns deles?

 

Não encontrámos qualquer lenda que o explicasse, mas uma história atribuída a Shennong - mais conhecido na cultura ocidental como o suposto descobridor do chá - dá uma possível sugestão. Tal como se diz que este Shennong, que se supõe que terá vivido por volta do século XXVIII a.C., terá em dada altura testado todas as ervas para apurar as suas características individuais, é possível que também se tenha acreditado, em outros tempos, que o autor do Clássico das Montanhas e dos Mares tenha procurado sintetizar todas as criaturas e as suas respectivas características, estudando-as na primeira pessoa e chegando a comê-las a todas por algo a que podemos chamar uma pura curiosidade científica. Será que isso aconteceu? Pelo conteúdo da obra somos levados tacitamente a acreditar que sim, mas as respostas sobre todas estas coisas são meras teorias e nada mais.

 

Vale a pena ler esta obra nos nossos dias? Caso a consigam encontrar em tradução - existe em chinês e pelo menos em língua inglesa - acaba por ser um texto agradável para quem se dedica ao estudo da forma como os animais foram sendo representados na literatura de outros tempos. Os restantes possíveis leitores até podem encontrar, aqui e ali, algum pormenor que os faça sorrir, mas existem textos muito mais interessantes para eles.

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!

Pág. 2/2