Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Mitologia em Português

01 de Setembro, 2023

Maria Coroada e o Cisma da Granja do Tedo, uma história hoje esquecida

O tema de hoje, referente a Maria Coroada e o Cisma da Granja do Tedo, deve-se primeiramente ao Professor José Hermano Saraiva. Ele referiu-o num dos seus programas, em que apresentou esta figura e a sua história de uma forma muitíssimo sucinta, cometendo até algumas pequenas incorrecções, e terminou ao avisar os espectadores que se tratava de uma história agora "completamente esquecida". O que, como é costume, não pôde deixar de nos fascinar. Quisemos saber mais, mas algumas pesquisas pela internet apenas revelaram um história incompleta, sempre unida a uma das suas filhas, a chamada "Mulher-homem"... e então decidimos que deveríamos abordar esta história, para a retirar de todo aquele enorme esquecimento em que se encontra nos dias de hoje. Não foi fácil - precisámos da ajuda da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, que tinha um livro preciosíssimo para este tema na sua biblioteca - mas aqui fica o resultado da nossa pesquisa:

Maria Coroada e o Cisma da Granja do Tedo

A mulher a quem dedicamos as linhas de hoje nasceu com o nome de Maria das Neves, mas viria a ficar mais conhecida pelo nome de Maria Coroada. Segundo se sabe, teve um total de 12 filhos e em dada altura da sua vida esteve muito doente, talvez à beira da morte. Tentou-se de tudo um pouco para a salvar, recorrendo-se até às artes da feitiçaria. E ela lá foi salva, por volta de 1830, mas é provável que toda a experiência, juntamente com uns misteriosos manuscritos que lhe trouxeram de Lisboa (não, nenhum deles era comprovadamente o Livro de Mórmon, contrariando o que outros escreveram por terem compreendido mal uma dada informação), a tenham alterado psicologicamente. Começou mais tarde a julgar-se uma espécie de nova reencarnação da mensagem cristã, uma "Terceira Eva", e nesse seguimento surgiu uma espécie de nova religião em seu redor, que depressa se separou do Catolicismo e gerou aquilo que ainda hoje é conhecido como o cisma da Granja do Tedo, em virtude da pequena aldeia em que tomou lugar. Infelizmente, esta senhora e a maioria dos seus seguidores nada nos deixaram por escrito, mas ainda se sabem mais algumas coisas sobre as crenças deste grupo de pessoas, que em dada altura até viajaram por diversos outros santuários e, de uma forma um tanto ou quanto estranha, tentaram mesmo resgatar imagens de Jesus Cristo da cruz que ele tinha de transportar às costas. É certamente uma ideia estranha, o que nos deve levar a perguntar... em que acreditavam todos eles?

 

Por exemplo, para benzer algo, a chamada seita* de Maria Coroada usava a seguinte fórmula - "Arcanjo me salve / E me haja de salvar", enquanto que o seu Pai Nosso era dito assim - "Pai sois nosso escolhido / Para a vós glória dar, / Pai sois nosso "veleante" [i.e. aquele que vela por alguém] / Para a vós glória dar, / Pai sois nosso no jardim / Para glória nos dar. / Amai vós este meu corpo / Para nossa alma consolar. / Amen." Quem ler estes versos com atenção poderá neles notar uma subtil referência a uma nudez, talvez até a um elemento sexual, que fazia parte das crenças deste grupo - sabe-se que alguns dos seus rituais incluíam mesmo essa exposição física do corpo, ou troca de comida de boca em boca, mas nunca parece ser dito que existisse qualquer tipo de cópula mais completa.

 

Dizia-se também que esta senhora teve diversas visões, chegando-nos pelo menos esta:

Só eu subi ao céu em vida, e o que vi foi o seguinte:
Primeiramente 7 camas de fogo do purgatório - e mais adiante o Pontífice Ud, afilhado de Cristo e da Virgem, com a mitra na cabeça, lançando fogo por todas as veias do corpo.
Depois passei ás 7 fontes dos arrependidos, formadas com as lágrimas que S. Pedro chorou.
Depois passei ás 7 fontes cristalinas, formadas com as lágrimas da [Maria] Madalena.
Depois passei ao céu dos Santos Inocentes, que a Virgem alimentava a seus peitos com o seu divino leite.
Passei depois ao céu da caridade, todo cheio de nichos ou altares, onde estavam muitos santos com grinaldas de flores.
E Cristo, descendo de um trono como da capela-mor, se aproximou de mim, e eu lhe falei de pé, mas os santos todos [se] ajoelharam.
Depois, Cristo voltou para o seu trono, tendo nas mãos os pecados do mundo; S. João Evangelista ao seu lado esquerdo, ao seu lado direito o Pai Eterno, e por cima o Espírito Santo, iluminando tudo com os raios da sua luz.
E à entrada do Empíreo estava o Anjo Custódio, que à minha passagem me fez uma continência.
Eu fui até ao primeiro degrau do trono e me curvei, e logo me afastei, recuando, para não lhe virar as costas.
E neste momento se correu um véu e apareceu a Virgem, que me disse: "Só tu tiveste a dita de subir ao céu em vida."
E descendo as três Divinas Pessoas, se acercaram de mim e Jesus me colocou sobre a cabeça uma coroa brilhante, dizendo: "Vai completar a minha obra, como terceira Eva que és. A tua casa será a nova Arca da Aliança, de onde há de sair a luz do Novo Mundo. Ata e desata, prega e baptiza, e escolhe e nomeia entre os teus e os estranhos os apóstolos de que necessites. Para tudo te dou todos os poderes e tudo desde já confirmo e aprovo."

 

Entre as suas crenças contavam-se igualmente diversas ideias relacionadas com os mais desfavorecidos e o campo (e.g. não mudar os marcos territoriais de sítio, um elemento muito comum na época, como também a lenda da Zorra Berradeira ainda indica), mas também algumas coisas muito mais inesperadas, provavelmente das mais interessantes e dignas de debate que já tivemos a oportunidade de ler em Português. Por motivos de espaço não é possível reproduzi-las aqui a todas, mas deixamos aqui doze breves sequências que convidamos à leitura, e fica prometido que não irão sair descontentes com elas, podendo até imaginá-las a sair da boca da própria profetiza portuguesa:

[Sequência 1] Para que se não repitam os crimes de Sodoma e Gomorra, os homens terão duas mulheres, e as mulheres um só homem. Porque o homem não pode dispensar a mulher, e a mulher pode bem estar uma temporada sem homem. É isto em harmonia com o fenómeno da sua criação. E as duas mulheres se reversarão de quinze em quinze dias no serviço e administração da casa. (...) E nunca haverá entre as duas invejas, ciúmes, nem desordens, porque são em tudo e para tudo iguais.


[Sequência 2] Ordeno muito particularmente os meus apóstolos, que são igualmente 12, e eis aqui os seus nomes:
- O 1º é o meu irmão Basílio, Pai Eterno e Deus Filho Alumiado, a quem todos os outros obedecerão (...)
- O 2º é o meu irmão António, o Sacramento e Galo-Galarim [note-se que assim foi este homem rebaptizado!], que tem de marcar a hora do juízo final;
- O 3º é o Grande Senhor do meio sol e meia lua;
- O 4º é o Rei Preto do Sordão [seria o Sudão?];
- O 5º é o Governador civil do Porto;
- O 6º é o Governador civil de Viseu;
- O 7º é o Imperador da Áustria;
- O 8º é o Imperador da Rússia;
- O 9º é o Macário de Castro, de Lamego;
- O 10º é o Arcebispo de Braga;
- O 11º é o Patriarca de Lisboa;
- O 12º é [o Papa] Pio IX.


[Sequência 3] O Primeiro Paraíso foi o do nosso pai Adão e da Primeira Era, mas durou pouco tempo. Estando muito estragada a humanidade, Deus a sepultou nas águas do dilúvio, deixando apenas o varão justo, Noé, para a continuar; mas continuando as prevaricações, mandou Deus a Cristo com a Virgem, que foi a Segunda Eva, e muito fizeram para converterem a humanidade pecadora, mas deixaram a obra por acabar, e por isso Deus me escolheu para Terceira Eva, a fim de completar a obra da redenção. (...)


[Sequência 4] Às mães principalmente pertence o dar a educação aos filhos, e se os não educardes bem, fazeis o forno em que haveis de arder e a lenha que vos há-de queimar. E nunca deixeis juntos os meninos com as meninas, por causa das tentações da carne.


[Sequência 5] E os carniceiros farão mais de 300 barcos e irão à pesca do bacalhau, e não o curtirão com salitre, mas com sal. E venderão a todo o mundo o bacalhau mais inferior a 40 reis o arrátel, e o melhor a 50 reis.


[Sequência 6] E tudo que toca ao ofício da agulha fica pertencendo às mulheres. Os alfaiates que tratem de outro ofício, vão trabalhar para o erário.


[Sequência 7] Este é o século da luz. Mas quem é a luz? A Terceira Eva por Jesus coroada.
Quem é a Purificação? O seu irmão António Sacramento.
E quem é a Doçura? O seu compadre Francisco.
E a serva do Senhor teve um menino que se não pôde vingar [i.e. faleceu cedo], porque o pai era casado e compadre. E o menino parecia-se com a Doçura [terá existido aqui uma traição amorosa?]. E o homem da comadre era desconfiado. Paz tecum - paz tecum!


[Sequência 8] E a esposa é a doçura do esposo pelo amor, e o esposo é a doçura da esposa. Tende os corações sempre unidos, como andaram sempre os corações da Virgem e de Cristo. E os pais tanto estimem os filhos como as filhas, e não haja no amor para com eles distinção, porque essas distinções são a ruína das casas e a desgraça dos filhos, das mães e dos pais. E os filhos e filhas são todos igualmente ossos dos seus ossos e carne da sua carne. E todo o pai que fizer excepção de filho a filho, seja devorado por Dantão e Ambrião. Paz tecum, paz tecum.


[Sequência 9] Já no Sarzedo lutei deste as seis horas da tarde até às dez horas da noite com Lúcifer e com um batalhão de demónios, de protestantes e de pedreiros livres, mas venci-os a todos, e Lúcifer ficou sendo meu escravo. Só fidalgos, bem conhecidos, eram nada menos de 27. Até ali era Lúcifer que os mandava, agora mando-os eu, porque lhes desmanchei a seita. Uns traziam caras de burros e outros de lobos.


[Sequência 10] Deus fez o mundo do Nada e primeiramente fez o Nada.
Do Nada formou a Fala. Da Fala fez a Ciência. Da Ciência fez a Sabedoria. Da Sabedoria fez a Doçura com que ele se havia de sustentar e a Virgem. E da Doçura fez o maná com que se sustentam os anjos no céu.
Depois formou a Fé, porque sem ela não podia formar o Céu.
Depois formou a Esperança, porque também sem a Esperança não podia formar o Céu.
E depois formou a Caridade, que vale tanto como a Fé e como a Esperança reunidas.
Depois formou a Concha que abriu em duas. E do lado direito tinha um Amor Perfeito. E do lado esquerdo uma Açucena, que era a Virgem.
Eis aqui os dois grandes mistérios.
O Amor Perfeito cresceu e botou uma lágrima que caiu como orvalho e formou a Terra.
Depois cresceu mais o Amor Perfeito, abriu o olho, e formou o Olho da Divina Providência.
E o Olho da Divina Providência formou o Divino Espírito Santo.
E o Divino Espírito Santo com o seu Divino Poder formou o Divino Pai Eterno.
E o Divino Pai Eterno com o seu Divino Poder formou o mundo com tudo o que nele se vê. Em seis dias, mas seis dias da divindade, que são seis anos dos nossos.


[Sequência 11] E Deus formou Adão com 1900 areias, sendo apenas nove limpas e todas as outras sujas. E eu, como Terceira Eva, desmanchei o mundo, o pecado e Adão, e o formei de novo com 23 almas justas.


[Sequência 12] E Deus formou Adão do coração da terra, e lhe deu espírito, anjo e alma. O espírito é o bafo. A alma é a saliva. E o anjo é a cruz que recebe com o baptismo.
E disse-lhe Deus: "levanta-te e toma conta do paraíso", e ele se levantou e passeou, tomou posse do paraíso, e em todo ele ficou mandando como rei.
E o demónio, querendo rivalizar com Deus, fez o macaco, em tudo semelhante ao homem, nos pés, nas mãos e na viveza, mas com rabo, porque o demónio era leão e tinha rabo.
E chegando Deus, disse ao demónio:
- "Que fizeste?"
- "Uma criatura igual a Adão"."
- "Mentes", lhe disse Deus, "porque Adão se levanta e caminha de pé, e o animal que tu fizeste não se levanta."
E o demónio o mandou levantar, e ele se não levantou. Mas Deus disse ao macaco, "levanta-te", ele se ergueu, mas firmando-se na cauda, como a do demónio que o fizera.

 

E claro que tudo isto é interessante, tem até alguns contornos de Gnosticismo e demonstra mais algumas crenças que o grupo tinha (e.g. a tal senhora não só rebaptizada pessoas, como também casava e descasava quem queria), mas desconhece-se como é que uma mulher que, segundo se diz, não sabia ler nem escrever, conseguiu ter ideias como estas. Será que vinham nos misteriosos livros que lhe foram trazidos de Lisboa? Será que vieram de alguém que sabia ler, escrever, até tinha alguns conhecimentos de Teologia? Não se sabe a resposta, mas sugerimos que quem o quiser descobrir comece por encontrar possíveis fontes portuguesas de "Dantão e Ambrião" como demónios do Inferno.

 

Deixando de parte essa dificuldade, poderão então perguntar-se o que aconteceu mais tarde a esta pequena religião, que já não existe hoje. Portanto, sabe-se que em 1847 as autoridades locais deixaram de achar piada a tudo isto, invadiram a casa religiosa de Maria Coroada, deram uma tareia em todos os aderentes da sua religião, destruíram completamente todos os objectos envolvidos neste culto e levaram consigo os respectivos livros. Não é claro se se tratavam dos livros inicialmente trazidos de Lisboa, se eram os da própria religião (contendo linhas como as citadas acima), ou se ambos eram um só e o mesmo. Deverá ter sido difícil continuar depois dessa altura, pelo que é então que se dá, essencialmente, por terminado o Cisma da Granja do Tedo, assim chamado em virtude do nome da aldeia em que esta senhora e a sua família viviam. Porém, sabe-se que alguns anos mais tarde - por volta de 1879 - a sua grande heroína ainda continuava activa, talvez já não tanto nas lides religiosas, mas agora na feitiçaria, curando algumas maleitas da população com rituais em tudo semelhantes aos da sua época.

Livro Maria Coroada ou o Scisma da Granja do Tedo

Agora, um leitor mais interessado poderá querer perguntar como se sabem estas coisas. Quer dizer, se a própria Maria Coroada nada nos deixou por escrito, como é possível que se saibam coisas como estas sobre a religião que fundou? A resposta é aqui mais simples do que poderá parecer - quando a sua religião terminou, por volta de 1847, alguns dos seus antigos fiéis devem ter ficado descontentes e partilharam com terceiros o que sabiam. E então, por volta do ano de 1879 foi publicado o livro cuja capa mostramos acima. É uma obra hoje rara, de título Maria Coroada ou o Scisma da Granja do Tedo, com autores sob a forma de pseudónimos (i.e. Patrício Lusitano e Pantaleão Froilaz), que não só preserva muita informação na segunda pessoa e documentos dessa religião, que pecam por estarem admitidamente incompletos, como também contém informações geográficas, históricas e culturais sobre a própria vila da Granja do Tedo e alguns dos locais circundantes.

 

Hoje, como o Professor José Hermano Saraiva mostrou no seu programa, já quase nada parece restar da memória desta Maria Coroada na aldeia de Granja do Tedo. Deu o seu nome a uma rua, a mesma onde esteve localizada a sua "Arca da Aliança" ou a "Casa dos Santos Custódios", o grande santuário da sua própria religião, mas nada mais resta do antigo culto religioso ou desta figura importante no seu tempo, até porque o local já sofreu diversas inundações. Nos nossos dias, ela parece até ser mais conhecida pelo singelo facto de ter sido a mãe de uma pessoa que nos ficou conhecida sob o título de "Mulher-homem". Mas esse já é um tema para outro dia, que as linhas de hoje já vão extensas demais...

 

 

*- Esta designação de "seita" tem uma origem e significados curiosos. Ainda hoje é usada quando se pretende dar um carácter muito negativo a alguma religião menos aceite pelos endogrupos de um dado país, mas terá, igualmente, de ser um tema que fica para outra altura.

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!

2 comentários

Comentar publicação