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Mitologia em Português

13 de Novembro, 2020

Sobre a "Kalevala"

A Kalevala, apesar de ter sido apenas compilada no século XIX por Elias Lönnrot, é o poema épico nacional da Finlândia (como o de Portugal é os Lusíadas). Mas o facto da obra ser tão recente é um pouco enganador, porque nos pode fazer pensar que o próprio poema o é, o que seria completamente falso - não só ele parece preservar um conjunto de mitos finlandeses de outros tempos, como também tem um conjunto de características que nos remetem para uma transmissão oral, nomeadamente o uso quase constante de fórmulas. É, por isso, uma compilação recente, mas de um conjunto de poemas, talvez até originalmente dispersos, que terão mais de 200 anos, mas que só mais recentemente foram sintetizados numa só obra escrita, na qual a influência directa de Elias Lönnrot nem é muito clara.

Uma imagem da Kalevala

Mas então, qual é a história da Kalevala? Começando pelo fim (mas de uma forma que não estraga a leitura da obra), o épico termina com a introdução do Cristianismo em terras da Finlândia, numa sequência em que um herói místico de todo o poema, Väinämöinen, decide abandonar essas terras. Nesse instante, ele refere os três grandes benefícios que tinha trazido ao seu povo - o Sampo, a harpa, e a luz do Sol e da Lua. São essas aventuras que o épico nos relata, desde a criação do mundo, mas de uma forma em cada um dos cinquenta cantos são, essencialmente, fechados sobre si mesmos, na medida em que podem ser lidos quase independentemente. Um canto pode contar-nos como Väinämöinen criou a harpa, e as primeiras canções que ele trouxe ao mundo, e o seguinte pode já referir uma aventura completamente distinta, como o da virgem Marjatta, que engravidou ao comer um arando. Mas, se forem lidos em ordem, ainda se tornam mais interessantes, porque assim cada elemento da trama surge num contexto fácil de compreender.

 

É, assim, a história da Kalevala, um conjunto de acontecimentos significativos para o povo da Finlândia, num conjunto de aventuras que se entrecruzam repetidamente, e em que as palavras da magia, que muito populam esta obra, são tão reais como a busca por animais míticos, os poderes do misterioso Sambo, ou um conjunto de conselhos que devem ser dados às mulheres e aos homens no momento do seu casamento. É quase imprevisível o que se vai encontrar num novo canto, após terminado o seu anterior, o que torna esta obra inesperadamente bela.

 

Infelizmente, a Kalevala não é uma obra que seja muito lida entre aqueles que falam português. O mesmo costuma acontecer com outros épicos nacionais - como o Kebra Nagast ou o Cantar de Mio Cid, entre outros de que já cá falámos antes - talvez porque parece existir uma ideia, muito errada, de que obras como estas só devem ser lidas no seu país de origem. É, até por definição, natural que homenageiem os feitos do seu povo, sejam eles históricos ou puramente míticos, mas isso não os torna menos interessantes, enquanto obras literárias. Pelo contrário, permitem-nos um olhar privilegiado sobre uma cultura que nos é alheia, mas também nos permitem aprender muito mais sobre nós mesmos e a nossa cultura. E, por isso, esta obra vinda de terras da Finlândia, como tantos outros épicos nacionais, merece ser lida, mesmo porque aqueles que nunca consideraram fazê-lo, até porque serão esses os que mais poderão ser surpreendidos com a sua trama constantemente inesperada...

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12 de Novembro, 2020

A lenda do Cavalum

Falando sobre esta incomum lenda do Cavalum, por todo o território de Portugal existem locais com nomes pouco vulgares e certamente intrigantes. Já cá falámos de alguns, mas talvez poucos sejam tão curiosos como as "Furnas do Cavalum", na Madeira, até porque nos instam a perguntar de onde virá um tão singular nome. Um nome, note-se, que nem sequer aparece nos dicionários portugueses. Portanto, como é a sua história?

Lenda do Cavalum

Conta-se que a 9 de Outubro de 1803 a ilha da Madeira sofreu uma das maiores cheias da sua história. Isso é completamente factual, mas segundo esta lenda a tragédia deveu-se a um monstro como nunca visto até então. O seu nome era Cavalum, e ele era essencialmente um enorme cavalo negro, a que o povo depois foi adicionando outras características - asas de morcego, um corno no meio da cabeça ou até a temível capacidade de cospir fogo. Então, numa confiança inabalável, a monstruosa criatura até destruiu uma igreja local (que na altura tinha o nome de "Capela de Cristo"), atirando a imagem de Jesus para os mares próximos, como que desafiando Deus a que o parasse.

Mais tarde, Deus lá decidiu intervir e fê-lo capturando o monstro, que encerrou no interior de umas cavernas próximas, onde este deixou de poder causar mais problemas - mas ainda hoje não deixa de o tentar fazer, e então os seus relinchos furiosos podem ser ouvidos no local nas manhãs de tempestade. Quanto à imagem de Jesus, essa, foi recuperada e levada para aquela que é agora conhecida como a Capela do Senhor Bom Jesus dos Milagres.

 

O local em que, segundo a lenda, este monstro foi encerrado é, naturalmente, o das furnas que tomaram o seu nome de Cavalum. Mas este desfecho, apesar de pouco vulgar, não é um caso único - recorde-se, por exemplo, o mito grego de Tífon, em que Zeus prendeu esse seu opositor debaixo de um famoso vulcão. Será que esse mito grego, ou um outro semelhante a ele, inspirou toda esta lenda nacional? Não podemos ter a certeza, mas mitos e lendas como estas, que existem igualmente por todo o mundo, servem para explicar um elemento místico e misterioso muito presente nesses locais, que certamente não podiam deixar de causar um grande espanto aos visitantes de outros tempos.

 

 

P.S.- Posteriormente, foi-nos perguntado qual a fonte literária para esta lenda madeirense. Se originalmente ela era apenas oral, a mais antiga versão escrita que encontrámos é a de Alfredo de Freitas Branco e foi recolhida na Madeira, entre muitas outras da mesma ilha, possivelmente entre os anos de 1924 e 1955. Desconhecemos, contudo e no seguimento desta lenda, que nome tinham as furnas antes do ano de 1803, ou se já existia, anteriormente às cheias, uma outra lenda associada a esta criatura lendária.

P.P.S.- Alguns parecem chamar a esta criatura "o Cavalo do Pensamento". Não encontrámos nenhuma relação real entre os dois, podendo a associação dever-se apenas ao facto de ambos serem cavalos; exisem, no entanto, histórias ficcionais em que o herói é instado a escolher entre "o Cavalo do Vento e o Cavalo do Pensamento", e o nome em questão poderá vir daí.

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10 de Novembro, 2020

A lenda de São Martinho (e as castanhas)

A lenda de São Martinho tem muito que se lhe diga. Que se refere ao francês Martinho de Tours, em vez de o Martinho de Dume nacional, é fácil de compreender em virtude da data da sua festa litúrgica - o "Dia de São Martinho", também conhecido como o Magusto, é aqui celebrado a 11 de Novembro*, enquanto que a nossa figura falecida em Braga é celebrada a 20 de Março. Sabendo-se então a identidade dessa figura cristã, que lenda essencial está associada a ele, e - talvez até mais importante - de onde vem a tradição de se comer castanhas nesse dia?

A lenda de São Martinho, e o mendigo

Existem, naturalmente, muitas lendas associadas a um São Martinho, mas a mais famosa de todas elas diz que ele era um cavaleiro no exército romano no século IV da nossa era. Quando, num dado dia, se encontrava em viagem durante uma chuva torrencial, encontrou em plena rua um mendigo quase completamente nu. Desejando ajudá-lo, pegou na espada que transportava consigo e rasgou o seu manto em dois, dando metade ao pobre homem, para que este se pudesse proteger da chuva, como visto ali na imagem acima. Pouco depois, a intensa pluviosidade desapareceu por completo, dando miraculosamente lugar a um dia de sol radioso, e o homem misterioso revelou ser Jesus Cristo, levando à conversão deste soldado.

 

Como é fácil constatar, esta lenda, apesar de ainda famosa nos nossos dias, nada nos diz sobre as castanhas, mas justifica é aquele período de tempo que é conhecido entre nós como "Verão de São Martinho", um período de dias solarengos numa época tipicamente chuvosa. Mas então, pergunte-se novamente, de onde veio a ideia de consumir o fruto do castanheiro no Magusto?

Castanhas

A resposta a essa pergunta passa, em parte, por uma coincidência. Tradicionalmente, as castanhas eram colhidas nessa altura do ano, levando, de uma forma natural, a que as pessoas se reunissem no dia de São Martinho e o celebrassem comendo aquilo que essa época do ano tinha para lhes oferecer, sem que existisse, inicialmente, qualquer relação oficial entre uma dada comida e o santo. Porém, segundo alguns idosos que consultámos**, a tradição de dar um golpe profundo nas castanhas, separando-as em duas metades quase iguais, provém da própria lenda deste santo, relembrando a sua história através de uma nova divisão, semelhante em espírito de partilha à que o próprio santo tinha feito. E assim se unem os dois elementos da publicação de hoje, explicando algo que já poucos parecem saber...

 

 

*- E porquê esta data? Nunca repararam que o número em questão se assemelha a um elemento da lenda, parecendo uma espécie de capa cortada em duas metades? Talvez seja mera coincidência, mas não deixa de ser curioso.

**- Já outras pessoas, como o nosso leitor José Querido, apresentam uma explicação mais humana para esse corte - "O golpe dá-se para evitar que as castanhas se estilhassem. Com o calor, a casca encolhe e 'rebenta' com estardalhaço. Dando o golpe, encolhe mas não estoira: uma parte afasta-se da outra".

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08 de Novembro, 2020

A expressão "... e o Senhor Ye gosta de dragões"

Na China existe uma expressão que diz algo como "... e o Senhor Ye gosta de dragões". Ela nasceu da breve lenda de um homem, naturalmente chamado Ye, que dizia adorar dragões (o que faz algum sentido, porque na cultura chinesa o dragão é um sinal de sorte), chegando ao ponto de decorar toda a sua casa, e até tudo o que tinha, com pinturas com a representação destes seres.  O que, por si só, não tem absolutamente nada de mal... porém, um dia um dragão celeste tomou conhecimento de toda esta enorme paixão e decidiu ir visitar este homem, achando que ele já tinha todo o direito de ver um verdadeiro dragão com os seus próprios olhos. Mas depois, quando este Senhor Ye viu uma criatura como esta com os seus próprios olhos, desatou então a fugir a sete pés, com muito medo...!

 

E então, o que significa a expressão "... e o Senhor Ye gosta de dragões"? Refere-se àquelas pessoas que dizem gostar muito de algo mas que o fazem somente para nos encherem os olhos, para se mostrarem aos outros, mas sem que verdadeiramente gostem do que tanto apregoam. É, aparentemente, uma expressão para a qual não temos um equivalente directo em Portugal...

 

 

P.S.- Esta mesma história também é contada no Japão, com detalhes em tudo semelhantes aos descritos acima, mas com o nome da personagem principal alterado para Sekko.

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06 de Novembro, 2020

O que aconteceu às armas de Aquiles?

Um dos momentos mais significativos da Ilíada tem lugar quando Pátroclo é derrotado em combate e os Troianos, na pessoa de Heitor, capturam as armas de Aquiles. Posteriormente, o famoso herói grego receberá um novo equipamento, feito por Hefesto e que lhe é entregue pela sua própria mãe, Tétis. Mas depois, o que aconteceu a essas novas armas de Aquiles? A questão foi-nos colocada, há já alguns dias, no Twitter.

Na sequência do mito, sabemos que quando o famoso herói grego foi derrotado em combate existiu uma disputa significativa pela posse do seu (novo) equipamento guerreiro; que esta teve lugar entre Ulisses e Ájax; e que o primeiro dos dois acabou por vencê-la, levando ao suicídio do segundo; mas... e depois? Será que as armas de Aquiles se afundaram algures, aquando das muitas viagens marítimas do herói da Odisseia?

Neoptólemo e Ulisses

A resposta é negativa. Quando Neoptólemo, o filho de Aquiles, se juntou à Guerra de Tróia, Ulisses achou natural devolver-lhe o equipamento bélico de seu pai. Quando essa guerra terminou, a mesma personagem manteve as armas de Aquiles em sua posse, como era seu direito. Mas anos depois, quando foi a Delfos e acabou morto por Orestes no Templo de Apolo (recorde-se até a expressão "Vingança de Neoptólemo"), as armas de Aquiles, ou que tinham sido originalmente pertença desse herói, tornaram-se propriedade desse recinto consagrado ao deus Apolo, onde puderam continuar a ser vistas durante alguns séculos.

 

Poderá parecer um percurso estranho, mas não é um caso único. Recorde-se, por exemplo, o mito do Colar de Harmonia, cujo infame acessório feminino numa dada altura também esteve em Delfos. E Pausânias, na sua famosa obra Descrição da Grécia, diz-nos que passou por diversos locais em que podiam ser vistos os mais diversos elementos retirados dos mitos dos Gregos.

Mas seria mesmo verdade, será que essas personagens míticas (e/ou as suas histórias) existiram, ou tratava-se de um mero estratagema de marketing, como ainda hoje acontece nos mais diversos santuários religiosos? É uma questão mais complexa, que não tem resposta fácil, mas sabemos é que pessoas como Pausânias acreditavam em pelo menos algumas dessas presenças. É provável que também tenha existido um certo cepticismo por parte de outros visitantes - como continua a acontecer nos nossos dias, quando uma igreja diz ter as relíquias de "São Nunca" - mas, salvo casos muito raros, pouco sabemos em relação ao cepticismo que podia existir quando os visitantes olhavam, por exemplo, para aquelas que se diziam ter sido as armas de Aquiles. E, em casos como estes, a simples crença basta-nos para responder à pergunta inicial.

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04 de Novembro, 2020

"Vi veri veniversum vivus vici", origem e significado

Vi veri veniversum vivus vici é uma daquelas frases que apesar de estar em Latim se tornou famosa apenas já nos nossos dias, essencialmente através dos comics V de Vingança e do filme que neles se baseou. Se a expressão utilizada nesses meios não é completamente correcta - na verdade, deveria ser provavelmente Vi veri universum vivus vici - qual é a sua verdadeira origem e o seu significado?

A frase 'Vi veri veniversum vivus vici' em filme

Nos meios ficcionais acima esta ideia aparece associada a um [João] Fausto, mais comummente conhecido como Doutor Fausto, uma figura interessante da cultura europeia de que já cá falámos anteriormente. Agora, não se pode ter toda a certeza se ele algum dia a proferiu, mas - e contrariamente ao que outras fontes pouco credíveis dizem - ela não aparece na peça de teatro de Christopher Marlowe, mas somente já em finais do século XX e sempre em obras totalmente ficcionais. Como tal, é quase certo que nunca foi proferida num contexto puramente latino, mas é somente uma invenção já dos nossos dias, e que pelo seu significado é colocada, falsamente, na boca de um homem, ou personagem, que na verdade nunca o disse.

 

Mas o que quer mesmo dizer vi veri veniversum vivus vici? Algo como "pelo poder da verdade, ao viver eu conquistei o universo", uma frase que, no contexto em que é proferida, faz sentido que se associe seja a Fausto, seja a uma das personagens principais do V de Vingança. Mas, ainda assim, deixe-se claro que não é uma expressão que venha da Antiguidade ou mesmo da literatura latina da nossa era; em vez disso, e como acontece em outros casos dos nossos dias, é uma expressão em Latim mas significativamente recente, como et in Arcadia ego ou nolite te bastards carborundorum, que também foram popularizadas de uma forma semelhante, seja na arte, em filmes ou em livros...

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03 de Novembro, 2020

A lenda de Rama (e o "Ramayana")

Falar da lenda de Rama, famosa entre os Hindus, implica necessariamente falar do épico Ramayana (ou Ramáiana, em forma aportuguesada), em que esta figura tem um papel principal. Os dois temas até se confundem, como se fossem um só - esta lenda é o tema principal apresentado nesse poema épico, apesar de também existirem outras versões da mesma história. Iremos então contá-la aqui, de forma demasiado breve, mas só podemos fazê-lo depois de apresentarmos duas clarificações iniciais, importantes para a maior parte dos leitores ocidentais, que poderão desconhecer estas coisas:

Os Avatares de Vishnu

Primeiro, é importante clarificar o conceito de avatar. Os Hindus acreditam num número muito grande de deuses, de que Ganesha será o mais famoso entre nós, mas têm algumas figuras que consideram mais importantes do que outras. Entre as mais significativas conta-se o deus Vishnu (ou Vixnu, se preferirem), que reencarnou várias vezes e em diversas formas distintas (a que se chamam avatares, alguns dos quais podem ser vistos na imagem acima), para trazer benefícios à humanidade - por exemplo, tomou a forma deste Rama, mas também a de Krishna (possivelmente a mais amada das suas formas), a de Sidarta Gautama (uma história muito interessante, mas que terá de ficar para outro dia), ou a de Vamana, entre várias outras.

 

Depois, temos também de introduzir, de uma forma breve, o próprio poema épico do Ramayana. Atribuído ao sábio Valmiki, que não só escreveu este poema como até é uma das suas personagens, este é um dos grandes poemas épicos da Índia (o outro é o Mahabharata, que já recordámos num mito), que narra as aventuras de Rama, um dos avatares de Vishnu, enviado ao mundo para derrotar Ravana, rei dos rakshasas (i.e. "demónios"), que entre os seus vários crimes andava a raptar milhares de mulheres bonitas e levá-las para a sua ilha, a do actual Sri Lanka. Face a estas duas introduções, resuma-se agora, muito simplificadamente, a história do Ramayana.

Personagens do Ramayana

Por influência de uma madrasta, Rama foi exilado por 14 anos do reino que iria herdar um dia, e foi viver para uma floresta acompanhado pela sua esposa, Sita (que era um avatar de Lakshmi, a consorte de Vishnu), e pelo irmão Lakshmana. Um dia, Ravana soube da beleza desta mulher e decidiu tomá-la para si, mesmo sabendo que ela já era casada com outro homem; para o conseguir, enviou um belíssimo veado de ouro para a floresta, e enquanto os dois irmãos se afastaram sucessivamente, para capturar uma tão bela criatura, o poderoso inimigo raptou então a formosa esposa do herói.

A parte mais significativa da história é, depois, aquela em que Rama tenta encontrar e recuperar a sua amada Sita. Pelo caminho, ele e Lakshmana conhecem Hanuman, o poderoso rei dos macacos, que os ajuda bastante nas suas aventuras, chegando a levantar uma montanha enorme nos seus ombros só por não encontrar uma pequena erva mágica que lhe foi pedida.

Como não poderia deixar de ser, Rama lá encontra Sita e derrota Ravana após uma longa batalha. Finalmente, tem-na nos seus braços, e... é aqui que surge aquele que, repetidamente, nos foi apontado como o momento mais controverso da obra. O herói parece amá-la verdadeiramente, num primeiro instante, mas depressa a rejeita. E fá-lo tratando-a até bastante mal, porque se recusa a acreditar que ela se tenha mantido fiel nos meses em que esteve a viver no palácio de Ravana - e mesmo quando ela prova, por influência divina, que lhe foi totalmente fiel e que o ama mais do que a qualquer outro homem, o herói ainda chega depois a duvidar dela uma segunda vez, antes de a perder para sempre neste mundo...

 

Não podemos, sem qualquer dúvida da nossa parte, captar toda a beleza deste épico num punhado de linhas. Nem conseguimos resumi-la com grande destreza assim, sendo que acima deixamos apenas um traçado demasiado breve do seu conteúdo. No seu cerne existem alguns momentos belíssimos, como o momento em que Rama vê Sita pela primeira vez, ou as muitas aventuras de Hanuman, ou a hybris repetida e estonteante do quase-invencível Ravana. E, por isso, talvez estas sejam aventuras que os leitores merecem conhecer em primeira mão, por muito pouco conhecida que esta obra seja em Portugal e no Brasil. Existe, pelo menos, em tradução inglesa, disponível gratuitamente online, pelo que o convite para quem a quiser conhecer melhor já está aqui feito!

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02 de Novembro, 2020

Richard Williams e um prólogo da "Lisístrata"

A comédia Lisístrata, da autoria de Aristófanes, certamente que não tem muito que se dizer de um ponto de vista mitológico. É, muito sucintamente, uma peça de teatro em que as mulheres de Atenas tentam acabar com uma guerra, recusando ter relações sexuais com os respectivos maridos até que estes deixem de lutar. O que pode, sem muita dificuldade, suscitar uma questão intemporal - porque queriam elas fazê-lo?

Podem ser muitas as possíveis respostas, algumas até mais sugeridas que outras na própria peça, mas uma resposta pode ser vista, de forma indirecta, na curta-metragem Prologue, de Richard Williams (director do igualmente belíssimo, mas perpetuamente inacabado, The Thief and the Cobbler), datada de 2015 e que até foi nomeada para um Óscar:

Apesar de, por definição, este ser um vídeo bastante curto, preserva-nos a animação que se pretendia que, um dia, tivesse vindo a fazer parte de uma sequência animada baseada na Lisístrata. Mostra a beleza da natureza e a forma como a sua ténue serenidade é interrompida pela brutalidade da guerra, numa sequência de combate em que só existem vencidos. Como sempre, e como em qualquer guerra... Sofrem aqui as crianças e as mulheres, dando-lhes mais do que razões para pedirem, nos tempos de Aristófanes como ainda nos nossos dias, o fim de qualquer conflito bélico. É pena que Richard Williams tenha falecido, em 2019, antes de concluir esta sua possível Lisístrata, que só por este breve, mas nem por isso menos belo ou cativante, prólogo já valeria a pena ir ver a um qualquer cinema...

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01 de Novembro, 2020

Breve história da origem do Pão por Deus

Contemos uma breve história da origem do Pão por Deus... Ainda há dias nos perguntaram de onde vem a tradição do Dia das Bruxas, mas o que já poucos parecem perguntar é sobre a história da tradição bem portuguesa para essa mesma época do ano. E, honestamente, até há poucos dias talvez não soubéssemos o que lhes responder, até que um colega se deparou com um livro de meados do século XX, Festivals of Western Europe. A obra em questão tem algum interesse, na medida em que detalha alguns feriados europeus e as respectivas histórias. Entre os vários feriados nacionais presentes nesse texto de Dorothy Gladys Spicer conta-se o Dia de Finados, a 2 de Novembro, em que é feita uma breve alusão aos eventos do dia anterior:

On November 1 bands of children go about singing for "bread for God," and are rewarded with food and drink. Sometimes the singers receive bolas de festa, special Day of the Dead sugar cakes, flavored with cinnamon and herbs.

 Broas do Pão por Deus

Apesar de sucintas, estas linhas dão-nos três informações importantes - há pouco mais de 50 anos as crianças cantavam "algo" (que, infelizmente, o texto não nos preserva), recebiam comida e bebida em troca, e até existia um bolo "doce, de canela e ervas", potencialmente característico da época. Que esses bolos se tratam das broas que hoje podem ser adquiridas em qualquer supermercado é difícil de duvidar, dados os seus ingredientes, mas o que dizer sobre a origem do Pão por Deus, bem como a cantiga associada a esse dia?

 

Em relação ao primeiro ponto, o da origem do Pão por Deus, ouvimos muitas opiniões, a mais contundente das quais diz que terá nascido com o terramoto de 1 de Novembro de 1755, em que supostamente as pessoas que sobreviveram ao cataclismo teriam andado pela cidade a mendigar "[dêem-nos] pão, por Deus". Mas essa é uma falsa origem, já que existem referências a um evento com este nome anterior à data, em que pão cozido era oferecido aos pobres. Por isso, se pensarmos na data a que está associado, é muito mais provável que a tradição tenha vindo de sucessivas adaptações de antigos cultos aos santos e aos defuntos, em que a oferta de pão (e bolos) aos mortos, que já existia na Antiguidade e até antes do Cristianismo (e de que até São Martinho de Dume se veio a queixar), foi sendo substituída pelas mesmas ofertas aos vivos - algo que, na verdade e de forma comprovada, até está por detrás de outras celebrações da mesmo época do ano, como o Halloween.

 

Agora, em relação à cantiga característica da época, encontrámos várias versões, possivelmente de diferentes locais de Portugal, mas que parecem ter todas algo em comum - a uma sequência estática de versos rimados, em que era pedido o tal "Pão por Deus", era dada uma resposta positiva ou negativa, consoante se gostasse, ou não, da oferta. Um documento da DGPC sobre património imaterial até dá exemplos tanto positivos - "Esta casa cheira a broa/Aqui mora gente boa!" - e negativos - "Esta casa cheira a alho/Aqui mora um espantalho!", "Esta casa cheira a unto/Aqui mora algum defunto!".

E isto é fascinante, verdadeiramente fascinante, porque denota que existe uma linha condutora semelhante entre o festival nacional do Pão por Deus e ideias (internacionais) presentes no Halloween, sendo possível ver o segundo como uma espécie de simplificação do primeiro. À medida que as pessoas foram saindo dos campos para as grandes cidades, foram esquecendo as ideias dos seus antecessores e os versos originais foram-se perdendo (há excepções, claro...), e uma simplificação dos rituais levaram ao que temos hoje, duas celebrações com um cerne muito semelhante, que competem pelos mesmos recursos, quando nem são assim tão diferentes, só pecando pela substituição de um património nacional, que está a ser progressivamente mais e mais esquecido, por um que é claramente estrangeiro.

 

Por isso, deixamos um pequeno desafio - caso alguém que leia estas linhas ainda conheça os versos da sua região relativos a este feriado, por favor deixe um comentário abaixo com os mesmos, tendo o cuidado de referir em que concelho os aprenderam. Talvez assim possamos ver as semelhanças, e diferenças, que existem nesta tradição em diversos pontos do país...

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